A
ORELHA DE VAN GOGH
adaptado do conto “A orelha de Van Gogh”
de Moacyr Scliar
um roteiro de curta-metragem de
Cristiane da Silveira Lima e
Glauciene Diniz Lara
Copyright ® Cristiane
da Silveira Lima.
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A ORELHA DE VAN GOGH
perfil dos personagens:
MENINO: 12 anos. Muito inteligente, é o mais
responsável e sensato da família, sem, no entanto, deixar de ser criança. O seu
pai é o seu melhor amigo, mas sente que este não o escuta muito. Não tem muitas
crianças como amigos, por isso se sente solitário. É sério e introspectivo, só
conversa facilmente com o pai. Gosta muito de ler e desenhar. Não sabe o que
quer fazer no futuro: está confuso, balançado entre seguir os caminhos do pai,
antes seu maior exemplo, ou buscar novas possibilidades na vida. Tem um carinho
grande pelo pai, mas duvida dos seus planos mirabolantes. Tem uma relação
tranqüila com sua mãe, mas tem mais afeto pelo pai. É também o narrador da
história.
PAI: Casado e com um filho de 12 anos, seu
amigo e cúmplice. 45 anos. Homem
simples, dono de um armazém. Costuma falar errado e não se preocupa com isto.
Acha-se muito esperto, é teimoso. Ama muito seu filho, mas acha que ele é
apenas uma criança, por isto não presta muita atenção no que ele lhe diz. É
querido pelos vizinhos, mas tem muitas dívidas pendentes. Tem uma imaginação
bastante fértil e acredita piamente que seus planos vão dar certo. Possui
múltiplas habilidades (e acredita nisso firmemente), mas não entende como até
hoje não enriqueceu. Gosta de se exibir para o filho contando histórias irreais
sobre ele, dizendo que sabe falar várias línguas. Mas no fundo tem uma baixa
estima e o filho é o único que capaz de elevá-la.
SOUZA: o credor. Muito magro, com uma veia
saliente na testa. Impiedoso com seus credores, sempre faz ameaças. Fala sempre
aos gritos. Teve uma criação rígida - quando criança era muito cobrado pelos
pais - por essa razão até hoje se sente com um grande peso nas costas. É um
pedante, descrente na humanidade. Na rua, as crianças correm dele. Porém, por
trás de sua aparência rude se esconde um homem de gosto muito refinado,
apaixonado por obras de arte. Seu pintor preferido é Van Gogh e em sua casa há
várias reproduções das obras dele. Vive um conflito interior entre ser sensível
e não acreditar no ser humano.
MÃE: 35 anos. Não dá muita bola para as
loucuras do marido e para a criança. Reclama muito da vida que leva, porque
além de trabalhar fora precisa se ocupar com os afazeres domésticos. É séria,
sensata, esteio da família. É quem cobra atitudes corretas do marido e, ao
mesmo tempo, quem conserta os seus erros. Vive se cobrando se devia ou não ter
se casado com o dono do armazém. Às vezes sente que não pode contar com o
marido nas horas mais difíceis, pois ela é a única que se preocupa com as
questões mais objetivas da casa.
FREGUÊS: verdadeiro trambiqueiro. Trabalha em
um necrotério. Aproveita-se da generosidade do dono do armazém para fazer suas
compras e nunca pagar por elas. No trabalho, está disposto a fazer coisas
ilícitas.
Roteiro
A mão de um jovem desenha algo sobre uma folha em branco. A ilustração é
feita com a técnica do tracejado e pontilhismo.
A ficha técnica começa a entrar.
O MENINO, 12 anos, roupas simples, cabelos curtos, magro,
está no seu QUARTO, que é semelhante à pintura “Room at Arles”, de Van Gogh.
Vemos o garoto de costas sentado em um banquinho desenhando sobre um papel
cartão que se encontra apoiado sobre uma pequena mesa de madeira.
Escutamos o som de carros, pessoas conversando, que
aumenta gradativamente.
CENA 2: NA RUA DA CASA DO MENINO – EXTERNA, DIA
O PAI, 45 anos, magro, cabelos curtos, vem caminhando
pelas ruas de um bairro de periferia. Duas CRIANÇAS estão na rua empinando
papagaio, quatro MENINOS jogam futebol, um CASAL JOVEM discute
escandalosamente, uma MULHER observa o movimento da rua pela janela, três
SAMBISTAS tocam na calçada de um botequim e tomam cerveja. Um cachorro
vira-latas quase é atropelado ao atravessar a rua, um carro buzina.
O som do samba aumenta gradativamente, até encobrir
totalmente os outros sons ambientes que vão pontuando ritmicamente: as palavras
soltas das pessoas, o som da bola, o ruído de uma porta que se abre, o barulho
da buzina, o latido do cachorro, uma lata de cerveja sendo aberta formam uma
cadência rítmica minimalista.
As poucas lojas estão fechadas, parece ser domingo ou
feriado. Durante o caminho o pai vai assoviando e cumprimentando a vizinhança.
Ao fundo, vemos os pedestres que caminham e alguns carros velhos cruzam. O pai
abre uma porta de madeira colonial.
CENA 3: ARMAZÉM – INTERNA, DIA
Revela-se o ARMAZÉM mal iluminado em que se destacam
barris cheios de grãos, salames pendurados no teto, garrafas de bebidas estão
em uma prateleira ao fundo, alguns queijos estão expostos sobre o balcão, onde
se vê também uma caixa registradora.
MENINO
(OFF)
Estamos, como de costume, à beira da ruína. Meu
pai é dono de um pequeno armazém e deve uma grande quantia a um de seus
fornecedores. Mas se falta dinheiro, sobra imaginação para o meu pai. Ele é um
homem culto, inteligente, e alegre também.
O pai começa a ajeitar algumas mercadorias do armazém
cuidadosamente. Abre a caixa registradora, que está vazia, e no interior dela
deposita algumas moedas e poucas notas de um e cinco reais que ele retira do
bolso.
MENINO
(OFF)
Ele não terminou os estudos, mas nem por isso
deixou de ser a pessoa mais inteligente que eu conheço. Se fosse compará-lo com
algum dos meus personagens favoritos, diria que ele é uma espécie de Visconde
de Sabugosa, aquele boneco muito inteligente feito de sabugo de milho do Sítio
do Pica-pau amarelo.
O pai retira um dos pés do sapato e de dentro retira duas
notas de vinte reais que também deposita no caixa. Ele fecha a caixa
registradora com certa violência.
CENA 4: QUARTO DO MENINO – INTERNA, DIA
QUERO TIRAR!!!!
Vemos finalizado o desenho que o menino estava fazendo. É
um desenho em estilo impressionista do personagem “Visconde de Sabugosa” de
Monteiro Lobato. Trata-se de um pôster que está dependurado na parede do quarto
do menino.
MENINO
(OFF)
Sempre ele me conta várias estórias sobre a época
que ele tinha a minha idade: só para vocês terem uma idéia, ele aprendeu a
falar com 6 meses de idade, com 8 meses já falava inglês. Hoje ele já fala mais
de 30 línguas. De vez em quando ele me ensina umas palavras em “barelês”.
Aposto que vocês nem sabem que existe um país na África chamado Barila?
(PAUSA)
Não se preocupem, eu também não sabia. Aliás, meu
pai é a única pessoa do mundo que sabe disso.
O menino está sentado sobre a cama concentrado em uma
lição de inglês. Vemos que se trata de exercício do tipo labirinto e algumas
perguntas. Vemos as interrogações que o menino escreveu sobre o papel,
referentes às perguntas que ele não soube responder. Em uma das extremidades do
quarto está seu pai, que fala com ele euforicamente, gesticulando muito.
MENINO
Pai, como é que se diz livro em inglês?
PAI
(PENSATIVO)
Deixa lembrar...
(ESTALA OS DEDOS E APONTA DIRETAMENTE PARA O
FILHO)
Leibô!
Vemos a boca dele pronunciar cada letra da palavra leibô.
Fade out
CENA 5: ARMAZÉM – INTERNA, DIA
Uma mão enrosca uma lâmpada de tungstênio que se acende e
revela um pedaço de queijo no interior de um refrigerador.
PAI
Este é o melhor queijo que eu tenho.
O FREGUÊS, 40 anos, magro, roupas simples, olha
analiticamente para a mercadoria.
FREGUÊS
Vou levar.
PAI
Mais alguma coisa?
(PAUSA)
Salame?
O freguês esvazia os bolsos e retira apenas uma nota de
cinco reais.
PAI
No final do mês você me paga.
FREGUÊS
Então me vê também um fumo de rolo!
O freguês abre um sorriso enorme. Dá as costas e sai. O
pai volta para o seu balcão e anota o nome e o valor da conta em uma pequena
caderneta.
MENINO
(OFF)
Meu pai é muito inteligente, mas diz que o país é
muito injusto e que ele nunca teve oportunidade na vida. Então, o que restou a
ele foi trabalhar no armazém, onde ele resiste bravamente, lutando pela nossa
sobrevivência.
Outros fregueses entram na loja. Ele lhes entrega a
mercadoria embrulhada em papel tipo pardo e anota o nome e o valor em um
caderninho, que logo está com a página cheia.
A sombra de alguém é projetada sobre o rosto do pai. Ele
arregala os olhos e engole seco. É SOUZA, 45 anos, muito magro, com uma veia
saliente na testa, quem se aproxima, carregando uma pasta debaixo do braço.
Souza bate a mão sobre o balcão e olha seriamente para o pai, de um jeito
ameaçador. Abre vagarosamente sua pasta, retira um papel e arrasta-o sobre o
balcão até que a folha esteja na frente do pai. Este, por sua vez, pega o
papel, mas demonstra estar constrangido.
SOUZA
Ou você paga essa conta imediatamente ou chamo a
polícia para fechar essa espelunca!
PAI
Mas senhor, é que...
SOUZA
Que mais que nada! Ou paga ou vai para a cadeia.
Para a cadeia!
Souza, enquanto briga, bate no balcão fazendo uma cadência
rítmica. Até que em determinado momento se transforma. Deixa a agressividade de
lado e se dirige a uma outra ponta do balcão onde vemos um livro.
MENINO
(OFF)
Por uma peça pregada pelo destino, Souza descobriu
um livro que eu havia esquecido em cima do balcão da venda do meu pai. Era um
livro sobre um pintor muito famoso que eu estava pesquisando para um trabalho
da escola.
Souza folheia o livro sem piscar os olhos, seu olhar
revela emoção.
SOUZA
Van
Gogh!
O pai olha surpreso para Souza. Souza esquece da raiva e
começa a falar serenamente com o pai.
SOUZA
Van Gogh é
o meu artista favorito.
Souza olha atentamente pra as páginas do livro até
encontrar a gravura de uma pintura de Van Gogh, “Retrato do doutor Gachet”, que
ilustra o livro.
SOUZA
Ele
é um gênio!
Souza mostra a pintura para o pai e olha aguardando uma
resposta. O dono do armazém parece não entender.
SOUZA
Esse
livro é seu?
PAI
(VACILANTE)
É.
SOUZA
Não sabia que você gostava de artes.
Pai reflete por alguns segundos.
MENINO
(OFF)
A sorte do meu pai é que ele pensa muito rápido em
matéria de enrolação.
PAI
Gosto demais, principalmente desse aí. É um
artista... completo.
SOUZA
É verdade. Então vamos fazer o seguinte, passa na
minha casa semana que vem, para acertarmos a sua dívida. Aí você aproveita para
ver as réplicas do Van Gogh que tenho lá.
PAI
Claro, com certeza.
Souza se despede e sai. O pai respira profundamente e olha
para o cobrador que vai embora. O livro foi deixado aberto sobre o balcão
mostrando a pintura de Van Gogh, “Blossoming Almond Branch in a Glass with a
Book”.
CENA 6: BIBLIOTECA DA CASA DO MENINO - INTERNA, DIA
Na BIBLIOTECA, um livro sobre a mesa, flores dentro de um
copo com água. O pai está sentado sobre a mesa estudando um outro livro. No
alto de uma das páginas do livro conseguimos ler “A biografia de Van Gogh”.
Através da utilização da técnica “stop
motion” surgem orelhas, marcadores de página e grifos neste livro.
Modificações na luz são visíveis, sugerindo uma sucessão de passagens do dia
para noite. O livro é fechado com violência.
Fade out
CENA 7: QUARTO DO MENINO – INTERNA, DIa
Fade in
O menino está sentado em um banquinho lendo.
PAI
(EM OFF, GRITANDO)
Achei! Achei!!
O menino olha para trás. O pai invade o quarto
euforicamente com um livro cheio de marcadores em uma das mãos. O pai coloca o
livro sobre o livro que o menino estava lendo, suspende o garoto da cadeira e o
balança pelos braços.
PAI
Achei! Achei!!
menino
(ASSUSTADO)
Achou o quê?
PAI
(COM FIRMEZA)
A
orelha de Van Gogh. A orelha nos salvará.
MENINO
A orelha de quem?
A MÃE, 35 anos, cabelos na altura dos ombros, se aproxima
da porta. O menino olha em direção à porta de entrada, o pai também se vira e
vê a mulher que se aproxima. Rapidamente ele larga o menino e fica
aparentemente normal, desfaz de toda sua excitação. Disfarçadamente levanta o
indicador e olha para o garoto, como se pedisse silêncio.
PAI
(FALA
BAIXO E RÁPIDO PARA O MENINO)
Depois te explico.
O pai volta a olhar na direção da entrada. A mãe entra no
quarto e se aproxima dos dois.
MÃE
O que é que vocês estão cochichando aí?
PAI
(APERTA OS LÁBIOS, BALANÇA A CABEÇA
NEGATIVAMENTE E DISPÕE A PALMA DAS MÃOS NA DIREÇÃO DA MULHER, COM UMA APARENTE
TRANQÜILIDADE)
Nada.
A mãe olha para o menino que, por sua vez,olha para o pai.
MÃE
Que gritaria foi aquela? Achei que...
O pai passeia seu olhar pelo quarto, olha para esposa e
aponta para o livro que está sobre a mesa.
PAI
É que eu achei esse livro que o menino tinha
perdido.
A mãe olha para o menino
que assente, balançando a cabeça afirmativamente.
MÃE
(OLHA COM DESCONFIANÇA PARA O PAI)
Vê se não apronta, hein?
PAI
Não preocupa não, mulher. Vai picar batata, vai.
A mãe faz cara de quem não gostou do comentário e sai. Ao
ver que ela se afastou, o pai novamente puxa o garoto para perto de si. Olha
pra trás para ver se a mãe ainda está lá.
PAI
(EM
VOZ BAIXA , PARA A MULHER NÃO ESCUTAR)
Acabei de pensar em um plano para ficar livre da
dívida com o Souza.
O menino olha para o pai curioso.
PAI
(AINDA EM VOZ BAIXA )
É que eu descobri que Van Gogh num momento de
loucura cortou a própria orelha!
MENINO
(PERPLEXO)
Você está pensando em cortar a orelha, pai?
PAI
(IMPACIENTE)
Não, é claro que não!!!
(PAUSA)
Ele amava uma mulher e resolveu mandar a orelha de
presente para ela!
O pai pega novamente o livro que estava folheando antes,
procura a página certa (onde está o auto-retrato de Van Gogh com a orelha
cortada) e mostra para o filho.
PAI
Vou oferecer essa relíquia ao Souza, como algo
muito precioso, em troca do perdão da dívida.
MENINO
Mas como o senhor vai explicar que essa orelha
veio parar justo na sua mão?
Insert de desenho de animação: o pintor Van Gogh
arranca a orelha e entrega-a, com um lacinho, de presente para uma mulher. Ao
cortar a orelha, o sangue começa a jorrar e é este sangue que matará a mulher
de susto. Alguém pega a orelha que a mulher, ao morrer, deixa cair no chão. Essa
orelha vai passando de mão em mão, até chegar à mão de Souza. Este dá pulinhos
de felicidade, beija o dono do armazém e sai aos pulos.
PAI
É fácil, filho. Eu vou dizer que a tal mulher que
Van Gogh amava era amante do meu bisavô. E eu recebi a orelha como herança.
O menino olha com reprovação.
PAI
Meu filho, a vida é tão difícil que vale de tudo
para sair do sufoco.
MENINO
Mas, pai, e a orelha?
PAI
A orelha...
CENA 8: IML - INTERNA, DIA
No IML, porta fechada ao fundo, um balcão com uma cadeira.
O freguês do pai (cena 5), está vestido com um jaleco branco atrás do balcão.
Ele entrega um pacote, que parece ser um vidro, embrulhado em papel pardo. A
mão do pai pega o embrulho.
PAI
Vou levar!
FREGUÊS
Não se esqueça que agora estamos quites. Não te
devo mais nada.
Pai apressadamente aperta a mão do freguês, pega o
embrulho e sai.
FADE OUT
CENA 9: SALA DA CASA DO MENINO – INTERNA, DIA
FADE IN
SALA DA CASA, mais a frente há um sofá com algumas
almofadas, ao fundo uma mesa de jantar com cadeiras e um vaso de flores. O
menino está sentado perto do sofá, desenhando uma orelha.
Insert de desenho de animação: Um menino caminha em um
labirinto que tem o formato de uma orelha. Ele tenta entrar em diferentes
lugares, mas eles não têm saída. Ele começa a andar mais rápido, vai de um
lugar ao outro. Ele olha com pavor para todos os lados e fica imóvel. A imagem
começa a rodar em espiral.
Uma mão estala os dedos.
MÃE
Ei!
(ESTALA OS DEDOS PERTO DO NARIZ DO GAROTO)
Filho!
O menino parece despertar de um transe. E olha para mãe
repentinamente.
MÃE
Você sabe do seu pai?
Antes que o menino possa responder algo, o pai chega.
MÃE
(PROVOCATIVA)
Falando no diabo, olha ele aí apontando o rabo!
A mãe sai. O pai olha para ela com desdém e puxa o garoto
para perto dele.
PAI
(COCHICHANDO)
Chega aqui filho. Fui buscar a nossa salvação.
O pai abre o embrulho cuidadosamente. Retira dali um
frasco com um líquido, contendo uma coisa escura de formato indefinido. O vidro
tem uma etiqueta em branco.
MENINO
O que é isso, pai?
PAI
(TRIUNFANTE)
A orelha de Van Gogh!
MENINO
(DECEPCIONADO)
Mas como é que o homem vai ter certeza que é a
orelha do Van Gogh?
PAI
(VACILANTE)
Ah, filho, quem é que vai dizer que não é?
O menino aparenta não ter gostado da resposta e balança a
cabeça negativamente.
PAI
Então, só pra garantir, eu vou escrever aqui no
vidro.
O pai toma da mão do menino o lápis e escreve no rótulo
“Van Gogh – Orelha”, em letra de forma.
CENA 10: CASA DO CREDOR - EXTERNA, DIA
O pai e o menino caminham pela rua, passam por um muro
coberto de hera e param em frente ao portão de grade da CASA DE SOUZA. A casa,
vista mais ao fundo, tem dois andares e um grande jardim na frente.
PAI
É agora que eu fico livre da dívida. Me espere
aqui fora.
O pai abre o portão, que se encontra destrancado, e
caminha até a porta da casa que vemos ao fundo. O menino continua do lado de
fora, acompanhando-o pelo olhar. O garoto senta na calçada.
MENINO
(OFF)
Meu pai estava muito certo do seu sucesso. Ele
nunca havia estado tão seguro em toda sua vida. Totalmente diferente de mim,
que, naquele momento, me senti mais inseguro do que nunca. Estava com medo do
futuro. Já não tinha mais a certeza de querer seguir os caminhos do meu pai.
Senti que tinha, agora, os meus próprios caminhos. Eu não queria mais continuar
perdido, queria achar a minha própria saída.
O off do menino é cortado pelos gritos de Souza.
SOUZA
Sai daqui, seu trambiqueiro! Achou que ia cair
nessa lorota???
O pai sai da casa, pela porta da frente, empurrado por
Souza. O pai tenta falar algo, mas é interrompido por Souza.
SOUZA
E olha o quê que eu faço com essa orelha...
Faz-se um silêncio absoluto. Souza, em slow motion, se
prepara para arremessar o vidro.
Ainda em câmera lenta, vemos o movimento dos lábios do pai
dizer “não”.
Souza arremessa longe o vidro com a orelha. O vidro “voa
pelos ares” até se espatifar no chão. Escutamos o barulho do vidro se partindo
e o som ambiente volta à normalidade.
Souza bate a porta. O pai e o menino olham para o vidro
quebrado no chão. O pai fica inerte, olhando para a orelha.
O menino se levanta, se aproxima do pai e pega-o pela mão.
O pai olha para ele desconsolado. O menino balança a cabeça negativamente e
sorri. O pai retribui o sorriso.
O menino puxa o pai e os dois fazem o caminho de volta
para casa andando de mãos dadas pela rua.
PAI
Falta de respeito. Você viu, filho? Me chamou de
trambiqueiro e até me enxotou.
MENINO
Uma falta de respeito mesmo, né pai? Ainda não foi
dessa vez.
PAI
(Resmungando)
Falta de respeito, falta de respeito.
Continuam andando pela rua em silêncio. A rua está
tranqüila e durante todo o trajeto o pai resmunga. Depois de um tempo o pai
pára bruscamente e pergunta para o filho.
PAI
Era a direita ou a esquerda?
MENINO
O quê?
PAI
A orelha que o Van Gogh cortou. Era a direita ou a
esquerda?
MENINO
(IRRITADO)
E eu é que vou saber? Foi o senhor que leu o
livro, o senhor é quem tem que saber.
Pai e menino retomam a caminhada.
PAI
Mas eu não sei. Confesso que não sei.
Pai e menino caminham por um instante em silêncio.
MENINO
(OFF)
Uma dúvida me assaltou naquele momento. Uma dúvida
que eu não ousava formular porque sabia que a resposta poderia ser o fim da
minha infância.
MENINO
E a do vidro? Era a direita ou a esquerda?
PAI
Sabe que não sei...?
(MURMURA COM UMA VOZ ROUCA, FRACA)
Não sei.
Pai e menino continuam o trajeto para casa. Vemos os dois,
agora pelas costas, enquanto descem uma ladeira. Eles continuam a conversa. O
som das vozes começa a ficar indistinguível. Só ouvimos algumas palavras
soltas. O pai começa a divagar: “e se...” O menino opina: “isso não... pode
ser, mas e se...”. Eles vão se afastando cada vez mais.
MENINO
(OFF)
Se a gente olhar bem uma orelha, qualquer orelha,
seja ela de Van Gogh ou não, verá que o desenho dela se parece com um
labirinto.
(PAUSA)
Neste labirinto eu estava perdido. E nunca mais
sairia dele.
FADE OUT
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