domingo, 17 de fevereiro de 2013


MOACYR SCLIAR: A ORELHA DE VAN GOGH


J. Paulo, simpático recente leitor deste blogue, referiu, num comentário, Moacyr Scliar; e vários livros da sua autoria, entre os quais um, de contos, chamado A Orelha de Van Gogh.
E sucedeu isto: não conhecendo Scliar, não tendo, portanto lido qualquer um de seus textos, sabia que estava, algures na minha estante, A Orelha de Van Gogh. Não é extraordinário? A explicação é mais simples do que pareceria: foi-me oferecido, talvez num aniversário, certamente há muitos anos. Nunca me motivou o suficiente para iniciar a sua leitura, mas, entretanto, o nome, bizarro, enigmático, instalara-se.

Comecei imediatamente a lê-lo. Bem! O meu leitor tem absoluta razão acerca da grandeza de Scliar. Alguns contos são muito breves, quase como haikkus: aquele que dá título à obra, por exemplo, tem três páginas. Mas nessas três páginas, deambula deliciosamente em torno de um problema; de uma solução extremamente engenhosa - e estranha e, bem vistas as coisas, absurda - para o problema e, por fim, do erro prático dessa solução: uma certa falha de pormenor.

Diria que esse é o modelo dos contos de Scliar: a solução para o que as suas personagens têm de enfrentar é sempre um primor de fantasia, um delírio de imaginação; mas, em última análise, nessa possibilidade subsiste um pormenor desacertado em relação à realidade. O meu leitor falava-me de um núcleo judaico na obra de Scliar e tem uma vez mais razão. Por um lado, é claro, porque essa desadequação entre o sonho e a realidade, ou entre a teoria e a prática, é um dos elementos fortes do humor típico dos judeus. Por outro lado, porque os temas bíblicos, as parábolas, nomeadamente, são, como Deus, omnipresentes na sua escrita.

A forma, contudo, como pega nos episódios do Antigo Testamento é surpreendente. Veja-se o conto com que o livro tem início, «As Pragas»: fala-se, obviamente, das pragas que o faraó e seu povo sofreram; mas o ponto de vista não é, por uma vez, o dos judeus, e sim o de uma família egípcia - que nunca oprimiu ninguém; que sempre trabalhou; que é pobre (ou, pelo menos, não rica) e, não obstante, passa pelos mesmos tormentos, infligidos por Deus, e que seriam dirigidos (em teoria) à casta opressora. Que Deus injusto é este, que tamanha ferocidade é essa, inexplicável e tremenda, que pune tanto culpados como inocentes, no afã de libertar o povo escolhido? Também no impagável «Diário de um Comedor de Lentilhas» se parte de um ponto de vista marginal, e de que nos não lembraríamos, o do derrotado: no caso, Esaú, que por causa de um prato de lentilhas perdeu a progenitura.

Ainda somente a meio do livro, prefiro não me pronunciar muito mais: a não ser para sublinhar a escrita, enxuta, como se para evitar um excesso de artifício e de acrobacias; porém, porosa, cheia de vida, adaptável, particularmente bela. «Adaptável», escrevi: é isso mesmo, porque em cada conto a linguagem de Scliar busca sempre o modo certo, podendo chegar àquele desnudamento quase total, como numa espécie de rascunho, todo feito de tópicos curtos, com que descreve a saga de Marta, à procura de um marido para seu filho, em «Marcha do Sol nas Regiões Temperadas», que é tão-só o mais comovente dos contos que me lembro de ter lido na minha vida.

J. Paulo pedia-me que deixasse, aqui registadas, algumas notas sobre a minha descoberta deste autor: ei-las, pois, grata e gostosamente, com a promessa de que, agora que me chegou, nunca mais deixarei Scliar ir embora.

Texto: José Pacheco.
Fonte: http://leitordeprofissao.blogspot.com.br

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